Exposição de Zanele Muholi celebram comunidade LGBTQIAPN+ em São Paulo
“Tudo o que eu quero ver é apenas a beleza. E beleza não significa que você tenha que sorrir, mostrar os dentes ou se esforçar mais. Basta existir”. É acima de duas fotografias coloridas de pessoas da comunidade LGBTQIAPN+, em uma das paredes do sexto andar do Instituto Moreira Salles (IMS), na capital paulista, que a frase de Zanele Muholi foi colocada.
A frase demonstra como o conceito de beleza permeia o trabalho de Muholi, artista e ativista da África do Sul que se identifica como uma pessoa não binária e é um dos nomes mais aclamados da fotografia atual. Em seu trabalho a beleza não é apresentada como uma qualidade, mas se transforma em um ato político, colocando em evidência e destaque pessoas que geralmente são postas à margem da sociedade ou da história.
Em Zanele Muholi: Beleza Valente, a nova mostra em cartaz a partir deste sábado (22) no IMS Paulista, são apresentados mais de 100 trabalhos de Muholi que foram concebidos desde os anos 2000 até hoje, incluindo trabalhos inéditos produzidos no Brasil. Além de fotografias, o conjunto apresenta ainda vídeos, pinturas e uma escultura em bronze colocada na entrada do edifício.
A mostra faz um panorama de Muholi, mostrando como sua obra funde arte e ativismo e produz uma nova visão sobre a arte do retrato e sobre o conceito de beleza.
“É um trabalho que vai falando muito sobre a possibilidade da beleza como ferramenta de resistência e empoderamento”, descreveu Daniele Queiroz, uma das curadoras da exposição junto a Thyago Nogueira e Ana Paula Vitorio.
“Não são os padrões de beleza que vão ditar esse movimento, mas são as próprias pessoas que são fotografadas. Essa beleza está então embutida de uma valentia”, acrescentou, explicando sobre a escolha do nome da mostra.
Fotografia como cura
Muholi nasceu em 1972, durante o regime de apartheid na África do Sul. O fim desse regime de segregação racial e o estabelecimento de uma nova Constituição, implementada por Nelson Mandela em 1996, não foram suficientes para combater o racismo, o preconceito e os crimes de ódio no país. Foi para lutar contra essa realidade que Muholi decidiu estudar fotografia e começou a fazer reportagens que expunham a violência no país.
“Eu uso a fotografia para confrontar e curar, por isso me denomino ativista visual”, descreveu Muholi sobre a própria trajetória artística.
Com o passar do tempo, as fotografias de denúncia viraram retratos e autorretratos e ganharam uma nova dimensão, passando a se transformar em um grande arquivo de imagens que fornece ao mundo uma nova perspectiva histórica, confrontando e subvertendo as narrativas coloniais.
Esse grande memorial feito por Muholi vem fornecendo aos museus de todo o mundo imagens de pessoas que foram historicamente excluídas das representações oficiais.
“[A obra de Muholi] amplia a nossa compreensão, não só da arte, mas também do respeito da dignidade humana”, disse Thyago Nogueira.
“Pensei no meu trabalho como se fosse um texto visual que tem um contexto que fala por muitas pessoas como eu e que se expressam como eu”, disse Muholi, em entrevista coletiva concedida esta semana na sede do IMS, na capital paulista.
Seu trabalho, descreveu, tem o objetivo de dar um novo significado à beleza. “[A beleza é] uma coisa que às vezes não ouvimos de outras pessoas que estão nos criticando ou nos violando ou quando elas querem que você se sinta menos que alguma coisa. Então, a beleza é uma questão de afirmação e de memória, de olhar para si mesmo no espelho. A gente só precisa carregar esse pensamento conosco, dentro de nós mesmos, para dizer que somos lindos e aí nos sentiremos mais fortes. Isso é sobre força, é sobre afirmação. É sobre uma ênfase na nossa existência”, definiu.
Além de subverter a forma como essas pessoas eram retratadas no passado, suas obras têm também o objetivo de se transformar em uma plataforma de educação. “Isso é para dizer que os museus estão se abrindo, e os espaços estão se abrindo e muitas pessoas podem ser educadas sobre esses problemas que são delicados e, às vezes, íntimos”, ressaltou. “A gente fala que esse trabalho precisa ser discutido e precisa ser usado também para educação, para que as próximas gerações saibam que a gente pode viver nessa sociedade de uma forma saudável”, acrescentou.
Para Muholi, a educação precisa ser repensada em todo o mundo para se tornar um ambiente mais inclusivo. “Vamos mudar o currículo, vamos mudar a forma como as pessoas pensam e a forma como as pessoas falam e articulam a si mesmas. Precisamos criar espaços seguros e ambientes seguros”, defendeu.
“Se as crianças fossem ensinadas que o racismo é errado desde o começo, elas não cresceriam com ódio. As crianças brincam juntas, elas não sabem nada sobre quem é uma pessoa negra ou sobre quem é uma pessoa branca até que isso seja ensinado a elas”, ressaltou.
Séries fotográficas
Nessa retrospectiva de Muholi no Instituto Moreira Salles estão sendo apresentadas suas principais séries fotográficas, como Faces e Fases (Faces and Phases), em que ela faz um arquivo da comunidade LGBTQIAPN+ sul-africana; além de Somnyama Ngonyama e Bravas Belezas (Brave Beauties). O público também vai encontrar imagens produzidas no início da carreira de Muholi, como Apenas Meio Quadro (Only Half the Picture), série realizada de 2002 a 2006, que documenta pessoas que sofreram violência de gênero ou racial, como agressões e estupros “corretivos”.
Muitas destas séries são fruto de um envolvimento com as pessoas fotografadas, buscando retratá-las com suas roupas e poses preferidas, em situações que valorizem sua imagem e aparência. “Eu queria que isso fosse muito articulado no meu trabalho porque as pessoas são pessoas, no final das contas. E o amor é o amor. E o respeito é uma coisa chave para qualquer pessoa, independente de como essas pessoas se identificam. E esse diálogo é sobre a política de existência e a política de silenciamento e a política de escutar o outro sem ser violento. Essa pessoa [retratada] fala ‘eu estou aqui, me escuta, respeite a minha existência’”, explica Muholi..
A mostra traz ainda obras inéditas feitas no Brasil em 2024, quando Muholi veio a São Paulo para participar do Festival ZUM e conheceu organizações e instituições LGBTQIAPN+, num diálogo entre a história da luta por direitos no seu país e no contexto brasileiro. “Em diálogo com as obras e com essa cronologia sul-africana, a gente também pensa a luta por direitos aqui no Brasil”, enfatizou Ana Paula Vitorio.
Muholi estará presente na programação de abertura da mostra neste sábado. A partir das 15h, participa de uma conversa com o público, acompanhada pela equipe curatorial. E às 17h, de uma sessão de autógrafos do catálogo da retrospectiva, que será lançado na ocasião.
Todos os eventos, inclusive a visita à exposição, são gratuitos. Mais informações sobre a mostra, que fica em cartaz até 22 de junho, podem ser obtidas no site do instituto.