Rio: quilombolas cobram ação do poder público para instalar energia
Certificado desde 2016 pela Fundação Cultural Palmares e reconhecido pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) em 2021, o Quilombo Santa Justina e Santa Izabel, em Mangaratiba, no litoral sul do Rio de Janeiro, espera vencer em 2025 um obstáculo crítico para sua sobrevivência: o acesso à energia elétrica. Ainda sem a posse da terra, a comunidade localizada em duas fazendas privadas vive às escuras.
“Nós já perdemos muita gente por causa da falta de luz”, disse o presidente da Associação de Moradores, Amigos e Amigas da Fazenda Santa Justina e Santa Izabel, Sílvio dos Santos Soares, representante legal da comunidade quilombola.
Silvio relata que, por falta da energia, não há como manter remédios refrigerados ou ligar um nebulizador, por exemplo. “Os idosos e as crianças sofrem mais”, destacou. A comunidade, conta, funciona com lampião e velas — o que com frequência causa acidentes com queimaduras, especialmente, nos menores — e enfrenta também dificuldade no beneficiamento de alimentos da agricultura familiar, fonte de renda local.
A solução pode vir de uma reunião na próxima terça-feira (7) com órgãos públicos federais, municipais e a concessionária de energia Enel para cobrar a instalação da rede de energia elétrica. A comunidade protestou, no último dia 30, contra o atraso na eletrificação, fechando o tráfego em um trecho da BR-101.
Devem participar da reunião o Incra, a Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro (Alerj) e da Ordem dos Advogados Brasil, o Ministério Público Federal no Rio de Janeiro, a Enel e a própria prefeitura, para acertar detalhes da nova licença ambiental autorizando a obra. A reunião é uma tentativa de superar a falta de anuência dos atuais donos das fazendas onde está a comunidade, a empresa privada Ecoinvest – Desenvolvimento Empresarial, que, segundo Enel, não autoriza a entrada da concessionária de energia para a instalação da rede.
A Agência Brasil tentou contato com a sede da Ecoinvest, no Rio, por telefone, sem sucesso. A reportagem será atualizada em caso de manifestação.
O representante do Movimento de Pequenos Agricultores, Beto Palmeira, que presta apoio à comunidade, explica também que a luz é um fator decisivo para a manutenção de Santa Justina e Santa Izabel, uma vez que os jovens quilombolas acabam deixando o local em busca de melhores condições de vida. “Essa é uma estratégia da especulação imobiliária para minar as gerações futuras e aniquilar o quilombo”, denunciou.
A anuência dos proprietários da Fazenda Santa Justina para instalação da luz era uma exigência da prefeitura de Mangaratiba à Enel para licenciar a obra. A nova gestão, que assumiu em 1º de janeiro, no entanto, prometeu cancelar a obrigação, liberando a Enel para entrar nas fazendas, informou o poder municipal à Agência Brasil.
“O prefeito Luiz Claudio Ribeiro reconhece que o direito à energia elétrica é constitucional e irá agilizar todo o processo”, informou a prefeitura, por meio da assessoria de imprensa.
Os quilombolas argumentam que o direito à luz elétrica já havia sido resguardado em determinação anterior da Justiça Federal e, por isso, eles esperam uma solução conjunta.
Uma Ação Civil Pública movida pelo Incra e pela Fundação Palmares, em 2019, em defesa do quilombo, obrigou a dona das fazendas a “abster-se de obstaculizar a entrada da concessionária de energia elétrica”, assim como impedir manifestações culturais, o acesso dos próprios quilombolas, visitantes ou qualquer outro serviço público à comunidade, como a entrada de ambulâncias.
Ao julgar o processo, a Justiça alertou que o controle do acesso à comunidade, com cerceamento do direito de ir e vir, causava “danos irreversíveis”. No despacho, a desembargadora Maria Izabel Gomes Sant’anna resguardou os direitos dos quilombolas à área até o final do processo de titulação no Incra, que enfrenta contestações legais.
Para justificar a decisão, Sant’anna citou a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) e ressaltou que o governo brasileiro pode ser implicado por descumprir o direito internacional, se não garantir os direitos da comunidade.
“Verifica-se, no presente caso, a necessidade de acomodar de forma razoável o direito de propriedade da ré com o direito da comunidade permanecer no local e exercer seus direitos (…) sem interferência da proprietária, enquanto o procedimento administrativo não for concluído”, disse, no despacho, atendendo pedido do Incra e da Fundação Palmares.
Em comunicado à comunidade, no último dia 30, a Enel informou que tentou várias vezes autorização para instalação da rede e que permanece aberta ao diálogo. A eletrificação prevê a instalação de 194 postes e transformadores e deve levar 12 meses.
“A Enel Rio tem buscado de forma reiterada a obtenção do referido acesso, mas ainda não teve o retorno formal da empresa dona do terreno”, reforçou a concessionária.